domingo, 5 de fevereiro de 2012

as revistinhas

Quando eu era criança, principalmente na transição para puberdade, eu tinha muitas brigas com minha mãe. Ela sempre foi e é uma mulher carinhosa, generosa, devota, que dedicou toda sua vida e coração pra família. não conheço outro ser humano mais humilde e do bem. Ao mesmo tempo, naquela época, minha mãe era muito agressiva, quando tinha seus momentos de cólera. Eu me lembro bem do horror que eram algumas discussões que tínhamos, sempre começando por coisas bobas que se transformavam em momentos de dor e agressões verbais. e algumas vezes físicas. Eu ainda tento entender a cólera da minha mãe naquelas horas. e as causas delas. Eu tenho algumas suspeitas. a primeira é uma certa revolta por parte dela de não ter tido nada que facilitasse sua vida. Desde pequena ela só soube cuidar dos outros. da mãe que perdeu aos 14 anos. do meu pai. de mim e do meu irmão. de meia dúzia de primos. das crianças carentes. de todos. menos dela. Ela era dependente do meu pai financeiramente e foi forçada a assumir responsabilidades muito grandes desde criança. Ela ficou grávida de mim aos 18 anos. Tinha que dar conta de uma casa, com o alcoolismo de meu pai, sem nenhuma chance de escape. ela era uma refém da própria vida e estava presa nela. Eu acho que naquelas horas ela colocava pra fora, com aqueles gritos que ainda sangram meus ouvidos, toda essa dor e frustração. Minha mãe sempre acreditou que todas as outras famílias eram mais felizes que a nossa. que as outras esposas tinham maridos mais carinhosos, que bancavam bons jantares, viagens, passeios. Que os outros filhos eram mais educados, tinham mais méritos. Os outros sempre estavam numa posição de superioridade e ela de inferioridade. A opinião e aprovação dos outros sempre era a mais relevante.

A minha segunda hipótese, que na verdade se soma à primeira, era o fato de que ali ela já começava a perceber os sinais evidentes daquela homossexualidade de um filho que ela jamais esperou lidar nessa vida. com horror ela precisava fazer algo pra colocá-lo na linha. Ela não poderia jamais conceber e aceitar aquilo. Eu não posso dizer que as surras que levei foram por causa disso, mas eu acredito que possa sim, ter alguma influência.

Eu me lembro de uma reação dela que se repetia em inúmeras brigas que tivemos. Minha mãe, após vários gritos, e palavras duras, se dirigia às minhas coleções de menino. eram revistas em quadrinhos, papéis, desenhos, todo tipo de revistinhas. super heróis, cards, joguinhos e os destruía na minha frente. Perdi a conta de quantas revistinhas eu vi virar papel picado, assim como perdi a conta das vezes que aquilo me fazia chorar e xingar muito. não era possível que uma criança pudesse sentir tanta raiva, tanta ira acumulada, a ponto de quase explodir por dentro. Eu lembro também de uma coleção de brinquedos em miniaturas de todo tipo que eu tinha e guardava numa sacola plástica. sempre gostei de miniaturas de tudo, e ali havia miniaturas de carrinhos, de bonequinhas, de bichinhos, de tudo mesmo. eu adorava criar historinhas em um monte de ervas daninhas que viravam florestas tropicais, em pilhas de tijolos que viravam ruínas de uma civilização perdida, em poças d´água que viravam recifes de corais. Minha mãe dizia que eu já estava virando um rapazinho e que não cabia bem continuar brincando disso. Como eu tinha prazer. Lembro que um dia, após voltar de uma pequena temporada na fazenda de um tio, eu não achei a sacola. perguntei, mas ninguém respondia nada. Eu não lembro como fiquei exatamente ou que fiz, mas um dia eu vi vários daqueles brinquedinhos boiando numa fossa. todos haviam sido jogados fora ali.

O mais louco de tudo isso era a minha insistência. Eu consigo ver aqui, agora, na minha frente, um menino magrinho, chorando, soluçando, e sentindo muita, muita raiva. mordendo os lábios e revoltado com aquilo tudo, e indo dormir chorando mais ainda. o dia passava, ele ia pra escola. a vida continuava, e em pouco tempo havia uma nova coleção de revistinhas, que durariam até o próximo ataque de fúria da minha mãe. os brinquedinhos eu fui parando, talvez por ter realmente enjoado deles e crescido, talvez por ter desanimado com a ideia deles serem jogados no lixo de novo.

Mas as revistinhas reapareciam, em dobro. mais volumosas, em pilhas. elas aumentavam proporcionalmente à minha fome de conhecimento sobre tudo. sobre mangá, sobre séries, sobre biologia, sobre esoterismo, sobre sexo, sobre qualquer coisa. eu era muito, muito curioso. eu explodia com cada novidade. era tudo que eu tinha, era o mundo dos meus sonhos, só meu. e eu não abriria mão dele. cada vez que elas eram destruídas, elas voltavam mais fortes.

Minha mãe mudou completamente. não teve mais esses acessos de cólera. eu saí de casa e vim tentar a vida e estudar artes visuais na capital, sozinho. Eu acho que ela se arrepende de ter pegado tão pesado. talvez não precisasse tanto. Eu sei que isso causou um abismo entre a gente, mas também não a culpo, não tenho raiva mais. Me sinto desconfortável em chegar perto e expressar amor de uma forma mais afetuosa e efusiva. E isso tem ficado mais tenso ano após ano. minha mãe amansou absurdamente desde que saí de lá. Não consigo imaginá-la fazendo novamente as mesmas coisas agressivas que fazia no passado com tanta frequência e que machucavam.

Eu acho que assim tem sido vários outros desdobramentos na minha vida, como as coleções de revistinhas rasgadas. sempre dói tanto, mas eu precisava delas. eu precisava daquelas imagens e textos que chegavam até mim. eu precisava acreditar em algo, eu precisava ter algo só meu. Eu perdi várias outras coisas nesses anos e sempre fui obrigado a lidar com essas perdas sozinho, sem muita facilidade, sem muita barganha. o menino que soluçava e tentava resgatar algumas páginas não rasgadas ainda está encolhido em algum quarto de madrugada, pensando no quanto é difícil começar tudo de novo.

Nos últimos dias tenho acordado no meio da madrugada e chorando muito, mas muito, assim do nada. sem um motivo aparente, sem um foco, sem um direcionamento ou causa. não me sinto deprimido, não perdi a vontade de trabalhar, criar e sair com meus amigos. acho que estou relativamente bem, mas queria entender o porquê dessa estranha dor que não estou acostumado. nessa vida a gente tem vários tipos de dor. a dor da perda, a dor da saudade, a dor da rejeição, a dor da decepção, a dor física, a dor da impotência e bilhares de outras. e quando você não sabe a causa da dor? seria uma premonição de algo ruim? Qual o motivo de misturar tantas lembranças, tantas pessoas, tantas coisas sem nexo entre si nessas horas de choro? seria uma somatização de todas as outras formas de doer?

eu tenho sido obrigado a ser forte. e se tudo desabar?

O que está acontecendo comigo?


Um comentário:

sen.ti.men.to.li.ces.: disse...

Ao ler esse post, percebi que ainda há a possibilidade de ter esperança no ser humano. Por quê? Bom, há muita sinceridade no seu desabafo, além de muita coragem em compartilhar sua história. Mas ainda, por que a esperança? Porque digamos que na rotina, no cotidiano, na contemporaneidade a essência do ser humano se perde ao viver de aparências e superficialidades. E você mergulhou fundo ao escrever esse post.