Houve um tempo em que ele não fumava charuto quando você estava perto, ou soprava a fumaça para o outro lado, para não incomodá-la. Agora, ele leva o charuto para o quarto e de vez em quando até deixa cair cinza nos seus belos lençóis. Mas não importa o que ele faz: interessa mesmo é saber como vai seu coração. Vamos ao teste?
Quando ele ia surfar, seu maior prazer era ficar sentada na areia, olhando aquele deus dominando as ondas como se fosse um personagem do Antigo Testamento. Era o nirvana, entre uma onda e outra. Hoje você fica no celular falando com uma amiga e, se ele se afogar, só vai saber quando chegarem os banhistas para salvá-lo.
O tempo passa e as coisas mudam, inclusive aquelas que pareciam eternas.
Lembra daquele verão em que você, suando em bicas, dormia com o termômetro marcando 42 graus e o ar-condicionado desligado -felicíssima- porque ele tinha alergia? Isso, sim, era amor.
E lembra de quando ele resolvia ouvir jazz, aquele bem barulhento, e você nunca ousou dizer que preferia, mil vezes, ouvir Maria Bethânia cantando “Fera Ferida”?
De manhã, mesmo que acordasse com insônia às 6h da manhã, não tocava nos jornais; ele não gostava -nenhum homem gosta-, que nem você, o amor de sua vida, ponha o dedo nos jornais antes dele. E valeu? Bem, depende. Atenção: quando uma mulher responde depende é bom desconfiar.
A duríssimas penas -e sempre por amor- você deixou de fumar e de beber. Não que fosse uma Amélia; mas se fosse recomeçar, seria capaz de fazer tudo de novo? E no sábado à tarde, quando ia, toda sorridente, ver o filme de violência que ele queria e jamais o que gostaria de ver, pois abria mão de tudo para fazer sua vontade? E ainda encarava sair às vezes para jantar com seus amigos -e a mulher-, tendo que ser bem simpática, falar de problemas de casa e trocar receitas, quando a vontade era de se enfiar na cama com um livro até o sono chegar e dormir com a luz acesa, assim, a troco de nada.
Hoje, quando estão jantando os dois, sozinhos, e ele pede seu último camarão, você dá com a maior boa vontade ou quer matar?
É, a gente muda, a vida muda, e é preciso pegar leve. Mas, se comprar uma caixa de chocolates e na hora em que ele estiver chegando esconder no fundo da gaveta, atenção: talvez o amor tenha chegado ao fim.
Não se nega um chocolate ao ser amado, mas, quando isso acontece, é o sinal inequívoco de que o amor acabou.
Danuza Leão
____________________
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
Paulo Mendes Campos
Um comentário:
Hello. And Bye.
Postar um comentário