Há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. assim como há muitas idéias na cabeça, como uma tempestade. Hoje eu tive um dia tão estressante, tão caótico e puxado no trabalho, e ainda assim me sinto à léguas de distância da resolução dos problemas e resultados esperados. Pra piorar passei o dia com uma dor absurda nas costas, como uma agulha delicadamente implantada entre meu pescoço e atrás dos meus ombros. Desconfio que assim como os lobisomens ou nas lendas japonesas das pessoas que se transformam em outros seres durante a noite, eu devo estar virando uma espécie de serpente, pois só isso explica a má posição que devo estar dormindo pra acordar com tanta dor como anda ocorrendo. Preciso urgentemente de um ortopedista, antes que me corpo fique em forma de um ponto de interrogação.
Por isso, não hesitei, depois de entregue o trabalho mais cansativo e prioritário do dia, em matar a vontade de comer um acarajé, ali da rua fechada na região dos bares que passo todo dia quando vou pra minha academia. meses passando ali e resistindo. sem sentar numa mesa e pedir um chopp. não por auto castigo, mas por falta de clima. o bar é o bar porque há pessoas alegres e falando alto no bar. o bar é uma criação social, é uma celebração. deve haver um contexto. Por isso que raramente vou num bar beber e comer sozinho. Mas hoje eu precisei. Eu me permiti. A grana anda curta? foda-se. Acarajés engordam? foda-se. Não é legal sentar sozinho? foda-se. E comendo meu acarajé em estado de graça e felicidade efêmera, pensei tantas coisas, nas coisas desses últimos tempos. Não há nada que faça mais atualmente do que pensar, refletir, rever, questionar. Me pego falando comigo mesmo, me pego em diálogos que nunca irão acontecer, me pego pedindo satisfações e dando também. Me pego esclarecendo os últimos meses, numa espécie de auto terapia ou um monólogo psicodrama.
Foi bom desacelerar, foi bom comer o acarajé sem culpa, quase que secretamente. Eu me esquivei de quem me veria e sentaria pra falar comigo. Um grande amigo e ex chefe, hoje um senhor, me contava que na sua juventude, assim como eu, ele tinha muito pouco dinheiro e tinha que fazer acrobacias pra se virar. E que no dia do seu pagamento, a primeira coisa que ele fazia era correr pra uma loja de doces comprar 2 ou 3 trufas da marca X, que era a coisa mais chique, saborosa e prazerosa pra ele. aquele momento, segundo ele, era esperado pacientemente durante todo o mês, e era sempre o mesmo numero..no máximo 3 chocolates, que ele mastigava em câmera lenta, como nos comerciais da tv, pra sentir cada instante, cada pedaço, cada átomo, cada gota de saliva misturada com aquele cacau. não faria sentido comprar o salário inteiro em chocolates finos, era sempre a mesma quantidade. um prazer medido, calculado. tão pouco, tão verdadeiro e intenso. Eu me senti um pouco assim hoje, me perguntando quantas coisas estou me privando, e como funciona essa coisa da dor física e da dor espiritual, do peso da rotina, da busca pelo prazer e da busca pela cura, e como tudo isso anda junto e misturado.
Por outro lado, eu mentiria se dissesse que todos os meus dias são assim. não, não são. não sei se daria conta, mas gosto um pouco desse turbilhão que ocupa a cabeça das coisas mais tristes. é interessante notar como o coração, no estado de nebulosa, mudando de forma, se comporta. Alguém disse que é preciso estar distraído, pra algo acontecer, pra tal coisa surgir, e se instaurar em você, não tenho certeza, mas acredito que a pessoa se referia ao amor. daí, você pode imaginar quantas formas e tipos de amor conseguir pensar, inclusive o amor próprio. a nebulosa é um monte de poeira e gás, o farelo do universo, que a gravidade vai acumulando e depois esculpe uma caixa de jóias, e de lá nascem estrelas, supernovas. até tudo morrer e começar de novo. Então, me vejo assim, distraído, estressado com o trabalho e rotina, e ao mesmo tempo pensando nas formas que o coração está assumindo como nebulosa, é um jogo de sair e entrar, revelar e esconder. estar aqui e não estar, relembrar e esquecer. isso é bem interessante, porque eu vejo um João que gosta de ser um pássaro na velocidade da luz, mas também há um João que gosta de ser uma pedra coberta de musgo. Às vezes tenho milésimos de segundo em que consigo ter a consciência do que significa poder transitar entre esses dois estados. o quanto é bom e o quanto dói.
Escrevo e penso essas coisas sentindo dores. Tem sido assim. às vezes pesado, às vezes leve. contando os dias, contabilizando meses. fazendo planos. contando as vezes que chorei neste ano. Enumerando as novidades. no belíssimo documentário, "A artista está presente", de Marina Abramovic, ela fala sobre o processo de sentir dor. Segundo ela, sentir dor é algo como um segredo bem guardado, no momento em que se passa pela porta da dor, é como atingir um outro estado mental, onde há beleza e amor incondicional, onde não há mais fronteiras entre seu corpo e o que te rodeia e onde começa a sentir uma sensação de leveza e harmonia consigo mesmo. Esse outro estado mental é exatamente aquele que provavelmente começa a fazer com que sinta que algo mudou em você. a forma de ver o mundo muda.tudo muda inexplicavelmente. como uma coisa sagrada.
É preciso saber como se portar e se preparar pra quando a dor chegar.
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