terça-feira, 17 de janeiro de 2012

o mundo imagem - Susan Sontag




A realidade sempre foi interpretada por meio das informações fornecidas pelas imagens; e os filósofos desde Platão, tentaram dirimir nossa dependência das imagens ao evocar o padrão de um modo de apreender o real sem usar imagens. Mas quando, em meados do século XIX, o padrão parecia estar, afinal, ao nosso alcance, o recuo das antigas ilusões religiosas e políticas em face da investida do pensamento científico e humanístico não criou - como se previra - deserções em massa a favor do real. Ao contrário, a nova era da descrença reforçou a lealdade das imagens. A crença que não podia mais ser concedida a realidades compreendidas na forma de imagens passou a ser concedida a realidades compreendidas como se fossem imagens, ilusões. No prefácio à segunda edição (1843) de A essência do Cristianismo, Feuerbach observa a respeito de "nossa era" que ela "prefere" a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser" - ao mesmo tempo que tem perfeita consciência disso. E seu lamento premonitório transformou-se no século XX, num diagnóstico amplamento aceito: uma sociedade so torna "moderna" quando uma de suas atividades principais consiste em produzir e consumir imagens, quando imagens que têm poderes excepcionais para determinar nossas necessidades em relação à realidade e são, elas mesmas, cobiçados substitutos da experiência em primeira mão se tornam indispensáveis para a saúde da economia, para a estabilidade do corpo social e para a busca da felicidade privada.

As palavras de Feuerbach - que escreveu poucos anos após a invenção da câmera - parecem, mais especificamente, um pressentimento do impacto da fotografia. Pois as imagens que desfrutam uma autoridade quase ilimitada em uma sociedade moderna são sobretudo imagens fotográficas; e o alcance dessa autoridade decorre das propriedades peculiares das imagens tiradas por câmeras.

Tais imagens são de fato capazes de usurpar a realidade porque, antes de tudo, uma foto não é apenas uma imagem (como uma pintura é uma imagem), uma interpretação do real, ; é também um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária. Enquanto uma pintura, mesmo quando se equipara aos padrões fotográficos de uma interpretação, uma foto nunca é menos do que o registro de uma emanação (ondas de luz refletidas pelos objetos) - um vestígio material de seu tema, de um modo que nenhuma pintura pode ser. Entre duas fantasias alternativas, a de que Holbein, o Jovem, tivesse vivido o bastante para pintar um retrato de Shakespeare ou a de que um protótipo da câmera tivesse sido inventado a tempo de fotografá-lo, a maioria dos bardólatras teria escolhido a foto. Não só porque ela, supostamente, mostraria a aparência real de Shakespeare, pois mesmo se a foto hipotética ficasse desbotada, quase indistinta, uma sombra marrom, ainda assim preferiríamos, provavelmente, a foto a mais um esplêndido quadro de Holbein. Ter uma foto de Shakespeare seria como ter um prego da Santa Cruz.

extraído de Sobre Fotografia/Susan Sontag, tradução Rubens Figueiredo - São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

Um comentário:

Unknown disse...

Ah, Sontag... Saudade do tempo em que ela aparecia nas revistas toda semana.