Nesse corredor escuro, frio e asfixiante existem 3 portas.
a primeira porta é a de cor lilás, que corresponde ao sentimento da melancolia e da espera. Quando entrei ali, não encontrei mais aquele homem em posição fetal que sempre dormia naquele quarto. O homem parecia ter acordado da letargia em que se encontrava quando o conheci, e estava em constante movimento, fazendo malas e separando documentos para o próximo check in. Ele não era mais um homem melancólico. era um homem do mundo dos homens, ele havia voltado à matéria, ao concreto, ao sinal 3G. Este homem havia se resolvido, e dava claros sinais de que ele havia se cansado de uma vida inteira de melancolia. sua poesia agora era medida, pensada, calculada e cuidadosamente direcionada. Ele havia se tornado um homem comum. e eu me transformei nele naquele instante. trocamos nossas almas, mas ele não se importou com isso. continuou suas tarefas. O homem da sala lilás não havia notado minha presença. Deixei com ele minhas chaves e meu número de telefone. Fui embora dali, um pouco chateado e ansioso, mas ao mesmo tempo confortado pela idéia de que eu não teria mais nada a perder.
a segunda porta é a de cor azul, que corresponde ao sentimento da verdade. Quando entrei ali encontrei o homem do espelho. Ele passou todos seus anos olhando para o seu próprio rosto em frente ao espelho já cheio de manchas e descascados, focando em um ponto que se perdia no nada, focando outra vez, e outra, e outra.. Era triste o olhar de cansado daquele homem que procurava a verdade, o sentido, o valor original de sua essência. Ele simplesmente queria achar uma pista naquele espelho. uma pista do seu self. Ao mesmo tempo a ideia de encontrar um monstro o deixava paralisado e em choque. ele tinha medo do que poderia encontrar, por isso desviava seu olhar para o nada de propósito. ele apenas enxergava, ele se recusava a ver. Quando ele me olhou, ele sorriu. e quando ele sorriu, eu o abracei e o chamei pra dormir comigo, pois ambos estávamos bem cansados. Quando nos deitamos, não consegui dormir, e passei a noite em claro, observando suas costas. me coloquei a uma distância para captar toda o comprimento dos seus ombros. eram costas bonitas, mas meu olhar também se perdeu ali, como o olhar dele se perdia no espelho. Desejei mais do que nunca que o dia amanhecesse para que pudesse voltar pra minha casa. foi isso que fiz assim que os pássaros começaram a cantar. saí angustiado e triste dali, mas conformado pelo fato de que eu não tinha mais nada a perder.
a terceira porta é a de cor laranja, que corresponde ao sentimento da vertigem. Eu ainda não entrei nessa sala, mas como a porta está entreaberta, eu consigo ouvir a voz do homem que guarda essa sala. ele é sereno, mas firme, percebo isso pela sua voz. nos comunicamos eu aqui de fora, e ele ali dentro. foi por causa da sua voz que eu entendi o que significa viver de vertigem. O visito uma vez por dia e paro meus afazeres pra ouvir suas histórias e contar as minhas. Hoje nós falamos sobre a vertigem que sentimos diante do nada, do horizonte, do absurdo da vida. sobre a vertigem, da imensidão do céu e dos abismos do coração. relacionamos a falta de ar de uma corrida, com a falta de ar que alguém especial provoca pela sua simples presença na minha frente. sobre a fome e busca dessa falta de ar. só de chegar na beirada dessa porta eu perco o ar, eu fico embriagado com o cheiro dessa porta, tonto, com vontade de deitar no chão e bater a cabeça na parede. Na porta laranja, há rabiscos desesperados de amor e paixão, de sonhos. um monte de bilhetes loucamente apaixonados e românticos se forma no rodapé da porta laranja. estão ali durante anos, já com musgo. como um muro das lamentações, só que ao contrário. Hoje eu e o homem falamos de um estranho amor como se fosse uma espécie rara. Me senti como um biólogo em uma expedição na floresta tropical, procurando uma nova espécie de cogumelo. desconhecida. eu não a encontrei, mas sei que ela existe ali, esperando ser descoberta. e usada. Me excita a idéia de que esse cogumelo seja alucinógeno, para que a viagem de nós dois fique completa. é hora de ir embora, não é permitido ficar muito tempo na porta laranja. antes de ir tenho vontade de jogar um coquetel molotov ali dentro e sair correndo. como a amo e como a odeio. Mas jamais teria coragem. é preciso de vertigem pra viver. viver de vertigem. é preciso sonhar. Saí dali sorrindo, mas sabendo que tudo era uma imagem, um holograma, um sonho. uma possibilidade do sonho, uma vontade dilacerante. Delicadamente fechei a porta da vertigem e fui comer algo, ainda tonto, mas me sentindo melancolicamente seguro e em terra firme, pois sei que eu não terei nada a perder.
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