domingo, 25 de março de 2012

R E X / B I R D

Ruffle my feathers!
2012
desenho
nanquim, photoshop.

a vida

A gente se acostuma / Eu sei, mas não devia - Marina Colasanti



Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)


(Via Silvia Amélia)

quinta-feira, 22 de março de 2012

MY PERSONAL HOKUSAI - 2012



Minha releitura da obra Ama e o Polvo, xilogravura de Hokusai (1814),
uma obra prima do estilo Shunga. (desenho, nanquin, e photoshop)


---

My interpretation of the AMA and the octopus/The Dream
of the Fisherman's Wife" - ( 蛸と海女 - Tako to ama ) by Hokusai,
which are called "everlasting masterpiece SHUNGA in history.
(woodcut, 1814)


quarta-feira, 21 de março de 2012

Outono






Cuesta mucho sacar todas las hojas de todos los árboles
de todos los países.
La primavera las cosió volando y ahora hay que dejarlas
caer como si fueran pájaros amarillos.
No es fácil. Hace falta tiempo.
Hay que correr por todos los caminos,
hablar idiomas, sueco, portugués,
hablar en lengua roja, en lengua verde.
Hay que saber callar en todos los idiomas y en todas partes,
siempre dejar caer, caer, dejar caer, caer, las hojas.
Difícil es ser otoño, fácil ser primavera.

Pablo Neruda

(via meu querido Ezequiel)

domingo, 11 de março de 2012

amanhã


Quando acordar amanhã cedo, estarei feliz pelo fato de Deus me ter transformado em um passarinho. um pardalzinho, pra dizer a verdade. Qual é tempo de vida de um pardal? um ano? dez anos? Estarei enfim, livre deste corpo. mas não totalmente livre da minha alma e meus afetos. eu não quero ser transformado um pardalzinho com a consciência de um pardal, mas sim trocar de corpo. Continuarei sendo o João, mas pequeno e com penas cinzas com notas azuladas. Eu até já sei onde será minha nova casa, numa pequena caverna de galhos que se formou no meu jardim, onde um casal de pombos botou ovo no carnaval. no jardim que estou cuidando agora, depois de muitos anos de vontade. Eu quero visitar tanta gente, tantas janelas. tomar banho nos bebedouros, bicar mamão maduro, bicar goiaba vermelha. Quero ser um pardalzinho anônimo, vira lata, que nem sabe cantar direito, mas fica fazendo algazarra quando o dia amanhece. Quero ser um pardalzinho como aqueles que me recebiam quando o sol raiava nas minhas voltas da balada, meio cambaleante, meio apaixonado, sempre melancólico. Lembro de todas as árvores da minha vida, da minha infância, por todos lugares onde passei. Quando eu já tiver sido transformado em passarinho visitarei todas novamente, pousarei em cada uma.

assim como visitarei você, numa tarde quente. estarei na sua janela, me refrescando em uma sombra fresca e observando você em mais um dia comum da sua vida. talvez eu ouse cantar algo, talvez eu fique só olhando mesmo. Eu, ali, sou só um pardalzinho ordinário, que alguns chamam de sujo, pestilento, praga urbana. um rato que voa, te olhando, e sorrindo pra você. sempre quis ser um pardal, um bichinho tão bonito, tão forte e tão rápido. lembro que quando era criança, nas pouquíssimas vezes que conseguia capturar algum pardal com nossas arapucas, ele jamais se adaptava nas gaiolas. simplesmente parava de cantar e um dia morria. não fazíamos idéia do que o pardal podia comer. ele nos intimidava, de certa forma.

Faz muito tempo que não me lembro de prestar atenção e acordar com os pardaizinhos. eu sinto falta da sua algazarra, assim como sinto falta de ficar sentado embaixo de uma árvore. por isso é que visitarei você, já como um pardalzinho. orgulhoso e feliz por ser agora tão pequeno, tão anônimo, tão bonito e tão solto. não vejo a hora de pousar na sua janela e ficar ali horas e horas.

sem medo, sem preocupações, sem tristeza. pois você jamais saberá que aquele pardal sou eu.

e enquanto viver, eu, o pardalzinho, estarei velando e protegendo você.

Qual o tempo de vida de um pardalzinho?

sexta-feira, 9 de março de 2012

ISSO NÃO ESTÁ CERTO

eu passei fome diante daquela mesa farta do melhor banquete
eu senti frio porque fiquei com medo de chegar perto da fogueira.
eu me senti sujo na beira do rio cristalino.
é muita energia jogada fora.

é muita chance pra ser desperdiçada.
o problema não é falta de amor.

são todas as espécies, formas e tipos de distâncias.